1. INTRODUÇÃO
No dia 1º de janeiro de 1967 entrou em vigor no Brasil o Decreto-lei nº 37 de 1966, tendo a lei aduaneira que possuía a intenção de ser uma espécie de Código Aduaneiro, conforme explicitado em sua exposição de motivos, completado hoje 57 anos de vigência. Não por acaso a Lei nº 5.172/1966, denominada Código Tributário Nacional, também faz aniversário hoje.
O DL nº 37/1966 é uma lei que estava adequada ao seu tempo e possuía o que dela poderia se esperar, tanto do ponto de vista econômico quando social, estabelecendo as normas que seriam aplicáveis ao comércio exterior brasileiro nos próximos anos e que se mostravam aderentes ao contexto de então.
Mas o Brasil e o comércio exterior passaram por mudanças profundas nas últimas seis décadas e é de se questionar se a norma está adequada para ser aplicada com precisão à dinâmica dos fluxos comerciais existentes entre o Brasil e os demais países, principalmente quando falamos das penalidades impostas aos cidadãos, muito embora alguns remendos aqui e ali possam ter corrigido pontos mais dissonantes.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
Analisando o contexto histórico daquele período podemos observar que nos anos 60 do século passado o mundo começava a desenvolver novos recursos logísticos que impulsionariam o comércio exterior para o modelo que hoje observamos, como a criação dos contêineres, cuja primeira utilização se deu em 1966 e que gerou a redução no número de estivadores do porto de Roterdã de 9 mil trabalhadores para apenas 208 em um intervalo de apenas um ano, como pode ser visto aqui.
Dois anos após a entrada em vigor da nossa lei aduaneira, o mundo viu voar pela primeira vez o Boeing 747, a grande aeronave que ampliou a capacidade de transporte aéreo de passageiros e cargas, aumentando significativamente os fluxos comerciais entre os países, que se avolumou exponencialmente ao longo dos anos e décadas vindouras. Em 1967 o número de voos era limitado pela falta de infraestrutura aeroportuária e pela limitação das aeronaves, fazendo com que houvesse baixa oferta e alto custo do valor das passagens.
No transporte rodoviário era também possível observar a limitação causada pela infraestrutura e pela restrição tecnológica, pois os carros fabricados no Brasil na época eram lentos e com baixa capacidade de transporte, além de a malha viária ser muito pequena, impedindo a expansão das trocas econômicas entre os países vizinhos, que ficavam prejudicadas por esses fatores.
Lembrando que nem mesmo a Receita Federal existia quando da publicação do Decreto-Lei nº 37/1966, pois o órgão só foi criado quase dois depois, em novembro de 1968!
3. EVOLUÇÃO DO COMÉRCIO EXTERIOR
Como consequência da evolução tecnológica e da melhoria da logística de transporte, além de outros fatores, houve incremento exponencial do comércio exterior desde o dia da entrada em vigor da lei em comento até o final do ano passado, conforme podemos observar abaixo, onde vemos que o Brasil saiu de uma balança comercial de 438 milhões de dólares em 1966, para um saldo positivo de 89 bilhões de dólares em 2023.
Sob qualquer ângulo, é possível notar que o comércio exterior brasileiro evoluiu e que a realidade do país necessita de uma nova ordem legal para que estejamos alinhados ao que a sociedade brasileira necessita e para que a atuação das Alfândegas possa se conectar com a realidade hoje experimentada no país.
Para colaborar com o debate, convido o leitor a refletir sobre algumas penalidades existentes hoje no DL nº 37/1966 do Código Tributário Nacional e se elas estão ou não adequadas ao nosso tempo.
4. PENALIDADES – DL Nº 37/1966 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
Segundo código tributário nacional, as penalidades impostas pelo DL 36/1966 podem ser de dois tipos: multas ou perdimento de mercadorias.
No primeiro caso, é possível perceber o grande número de multas que podem ser consideradas excessivas se comparadas ao descrito no tipo infracional, seja por penalizarem condutas banais, com valores irrisórios, seja pela aplicação de penalidade superior ao valor do tributo incidente sobre a mercadoria.
Já no que diz respeito ao perdimento de mercadorias, há situações dispostas na lei em que não há consenso quanto ao seu alcance, nem mesmo quanto a quem é endereçada a norma penal administrativa.
O Acordo de Facilitação do Comércio (AFC) prevê que essas situações devam ser mitigadas sob determinadas circunstâncias.
1.1. Os Membros concordam quanto à importância de assegurar que os comerciantes estejam conscientes de suas obrigações em matéria de cumprimento, de incentivar o cumprimento voluntário para permitir que os importadores, em circunstâncias adequadas, possam proceder a sua própria correção sem penalidade, e de aplicar medidas em matéria de cumprimento para que sejam adotadas medidas mais rigorosas para comerciantes que não cumpram essas obrigações. (nosso destaque)
Também a Convenção de Quioto Revisada (CQR) estabelece semelhante disposição.
3.39. Norma
As Administrações Aduaneiras não aplicarão penalidades excessivas em caso de erros, se ficar comprovado que tais erros foram cometidos de boa-fé, sem intenção fraudulenta nem negligência grosseira. Quando as Administrações Aduaneiras considerarem necessário desencorajar a repetição desses erros, poderão impor uma penalidade que não deverá, contudo, ser excessiva relativamente ao efeito pretendido. (nosso destaque)
Observando os artigos 106 e 107 do DL nº 37/1966 do Código Tributário Nacional, nota-se que existem multas proporcionais ao Imposto de Importação que variam de 10 a 150 % do valor desse tributo e outras multas que são de valor fixo e que podem variar de R$ 100,00 a R$ 50.000,00, a depender da infração.
Em algumas descrições das infrações é comum se observar palavras polissêmicas ou com conteúdo que podem induzir a subjetividade quanto ao seu cabimento, aumentando a litigiosidade e o contencioso administrativo para casos em que deveria existir uma tipificação absolutamente objetiva, que impedisse interpretações diversas. Ademais, seria necessária uma revisão das infrações existentes a fim de analisar a sua necessidade/relevância atualmente.
Podemos exemplificar com a multa de R$ 1.000,00 pela importação de mercadoria estrangeira atentatória à moral, aos bons costumes, à saúde ou à ordem pública, que é aplicada concomitantemente à pena de perdimento, na qual há um tipo infracional aberto e sujeito ao entendimento da autoridade aduaneira quanto ao que pode ser considerado incluído nesse rol (art. 107, VII, “b” do Código Tributário Nacional).
Outro exemplo são as expressões “finalidade comercial” (art. 106, II, “c”) ou “circulação comercial” (art. 105, X), como fundamento para a aplicação de penalidades, tanto de multa quanto de perdimento, mas que podem alcançar desde um simples item repetido na bagagem de um passageiro, até a ação de grupos especializados em inserção irregular de mercadorias no território aduaneiro sem o pagamento dos direitos aduaneiros.
Nesse sentido, é necessário observar mais uma vez as transcrições dos tratados internacionais já aqui apresentados, reforçando a ideia que a lei deve distinguir o comportamento equivocado de um cidadão, da ação dolosa que objetiva auferir rendimentos indevidos e que tem o condão de causar impacto negativo à sociedade, o chamado dano ao Erário. Em suma, punir todas as condutas de forma linear, sem que seja feito o devido sopesamento da conduta do cidadão, não está de acordo com as modernas técnicas de fiscalização pela utilização da pirâmide de conformidade.
Igual raciocínio deve ser aplicado à pena de perdimento, cujas hipóteses infracionais encontram-se também defasadas e necessitam ser revistas pelo Parlamento para que o país possa modernizar a atuação das autoridades aduaneiras e garantir a livre circulação de mercadorias no território nacional, em respeito ao inciso XV do art. 5º da Constituição Federal.
Como exemplo, citamos o caso da pena de perdimento de veículo estampada no art. 104, V, do DL nº 37, de 1966 do código tributário nacional, cujo tipo infracional não é capaz de estabelecer com clareza quem seria o infrator, tendo em vista que há muito se vem dando amplitude exegética para alcançar o proprietário do veículo quando a mercadoria transportada não lhe pertence.
Art. 104. quando o veículo conduzir mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável por infração punível com aquela sanção
Algumas perguntas são necessárias diante deste tipo infracional. Se a mercadoria não pertencer ao proprietário do veículo, poderia ele ser penalizado com a perda do seu bem? Havendo certeza de que ele é o responsável pela mercadoria, poderia ser aplicado o perdimento do veículo mesmo que o valor deste seja desproporcional ao daquela? Qual seria o limite razoável para que esse critério seja aplicado? A segurança jurídica não estaria fragilizada diante da subjetividade da decisão?
Observando o art. 2º da Lei nº 9874/1999, podemos perceber que a Administração Pública está vinculada aos princípios lá elencados, dentre eles o da razoabilidade, o da proporcionalidade, o da segurança jurídica e o do interesse público, restando, uma vez mais, questionar se aplicação da pena de perdimento a todo e qualquer veículo transportando mercadoria sujeito à pena de perdimento subsume-se ao tipo legal da infração e se há consonância com os princípios administrativos em geral.
5. CONCLUSÃO
O texto não tem a pretensão de esgotar assunto tão complexo e que diariamente gera inúmeras discussões na doutrina e na jurisprudência, mas apenas trazer elementos para que haja uma discussão equilibrada que redunde, quem sabe, na revisão da Lei Aduaneira.
A elevada carga tributária e câmbio altamente desfavorável à moeda brasileira frente às moedas mais fortes, como Euro e Dólar, são fatores comumente lembrados quando o assunto é a motivação para as condutas que acabam produzindo um aumento na ocorrência de infrações aduaneiras em prejuízo de toda a sociedade, que se vê diante da concorrência desleal por parte de quem burla os controles alfandegários.
Independente das razões que levam ao cometimento de ilícitos aduaneiros, isso não pode servir de razão para justificar a aplicação de penalidades com a utilização de critérios cuja técnica pode ser contestada em recursos administrativos e/ou judiciais, causando prejuízo a quem se viu privado de seus bens.
Obviamente que não está a se falar de qualquer caso, pois as mercadorias de importação proibida podem e devem ser combatidas com o rigor da lei, haja vista que nesses casos há a intenção para o descumprimento da norma, lembrando mais uma vez que para essas situações a pirâmide de conformidade recomenda o uso do aparato estatal com sua força máxima.
Precisamos urgentemente definir quais são as infrações aduaneiras mais relevantes, analisar os tratados internacionais que nos vinculam e buscar a construção de uma legislação aduaneira forte, que proteja a economia nacional e a sociedade daqueles que praticam atos infracionais dolosamente, sem descuidarmos dos direitos fundamentais dos cidadãos, estabelecendo normas mais claras para identificar cada uma das condutas e as penas a elas cominadas, dando a cada um o tratamento que lhe seja adequado.