Retomando a análise sobre a necessidade de sistematização e atualização na legislação aduaneira (artigo anterior), vejamos algumas estatísticas para termos a exata noção de como o Poder Executivo elabora a maior parte dos atos sobre esta matéria no país, tornando o Direito Aduaneiro um complexo sistema de normas de caráter infralegal que dificultam a atividade econômica do país em um segmento de grande importância para a geração de riquezas.
Gráfico 1: normas existentes sobre matéria aduaneira
O que se vê é que apenas os decretos, portarias e instruções normativas compõem a esmagadora maioria das normas que abordam temas com natureza aduaneira, sem falar nos demais atos administrativos que vinculam as autoridades aduaneiras ao seu cumprimento e que tornam, por consequência, sua adesão compulsória por parte de todos os cidadãos.
Com quase 400 (quatrocentas) leis e decretos-lei, o país poderia ter toda a matéria aduaneira estabelecida por ato legal – e esse número ainda seria excessivo! –, restando aos atos administrativos apenas questões de natureza operacional de seus agentes, sem que produzissem impacto direto sobre a atividade econômica ou que gerassem uma infinidade de regras aos cidadãos e empresas brasileiras.
É um equívoco o PL 508/2024 conferir ao Poder Executivo a competência para editar normas cujas definições já deveriam estar estabelecidas em lei e que garantiriam à comunidade que atua no comércio exterior maior grau de certeza quanto às suas obrigações, até mesmo por respeito ao art. 5º, II, da Constituição, no qual o constituinte originário submeteu os cidadãos à obediência da lei e não de instruções normativas.
Esse é o caso, por exemplo, do art. 158, do PL 508/2024, que dispõe da seguinte forma sobre o Regime Aduaneiro Especial de Entreposto Aduaneiro:
Art. 158. O Poder Executivo estabelecerá, no regulamento, relativamente ao regime de entreposto aduaneiro na importação e na exportação: I – o prazo de vigência; II – os requisitos e as condições para sua aplicação; III – as hipóteses e formas de suspensão ou cassação do regime; IV – as operações comerciais e as industrializações admitidas; e V – as formas de extinção regular.
Esta redação é idêntica àquela do art. 19, do Decreto-lei nº 1.455, de 1976, que dispõe sobre o mesmo tema, corroborando a afirmação que já havíamos adiantado. O PL 508/2024 é apenas uma consolidação das normas legais de Direito Aduaneiro já existentes, o que se revela absolutamente insuficiente para a modernização da lei aduaneira no Brasil.
As delegações contidas neste artigo sobre o Entreposto Aduaneiro deveriam estar na lei, deixando ao Poder Executivo apenas as questões sobre como seria realizado o pedido, formulários necessários, competências locais ou regionais de atendimento dos pedidos e, obviamente, a fiscalização e controle do regime.
Há uma percepção do Poder Executivo que as normas que tratam de matéria aduaneira ou tributária precisam estar sob sua gestão, a fim de que sejam mais facilmente alteradas em caso de necessidade e, não por acaso, a expressão “sanha legiferante” – ou seja, o desejo de regulamentar tudo por meio de normas administrativas – é frequentemente associada ao governo.
Essa postura é perfeitamente compreensível se olharmos o tema meramente pelo ponto de vista do controle aduaneiro, que é importante e necessário, mas estão desalinhadas com os anseios de uma sociedade na qual as normas devem estar voltadas à satisfação não apenas do próprio Estado, mas também para o bem estar de sua população.
Equivocado, pois, o PL 508/2024 nesse ponto, onde se prestou apenas a condensar normas ultrapassadas, com pouca ou nenhuma correspondência com a realidade, o que não é capaz de reduzir o número de normas administrativas que tornam a legislação pouco sistematizada.
ANACRONISMO DAS NORMAS
Melhor sorte não teve o projeto de lei ao não atualizar as normas existentes, revitalizando institutos ou redefinindo tipificações infracionais, como é o caso das questões relativas às infrações e penalidades e aos regimes aduaneiros especiais, tendo havido uma cópia de várias leis, inclusive do Decreto-lei nº 37, de 1966, na qual se nota, mais uma vez, a repetição do que está estabelecido nas normas que revoga.
No caso de eventos e feiras há uma clara restrição contida nas disposições normativas sobre a possibilidade de alfandegamento temporário da área para o entreposto aduaneiro, limitando ao promotor do evento essa prerrogativa, quando não há qualquer fundamento legal que vede a possibilidade de outros intervenientes a assim proceder. Isso obriga que cada expositor deva promover a admissão temporária de seus bens, aumentando custos e burocracia.
A existência de multas fixadas em percentuais excessivos, a delegação de competência para fixação de critérios para regimes aduaneiros e a manutenção de penalidades que atentam contra as orientações de tratados internacionais, são alguns dos pontos nos quais faltou ousadia ao PL 508/2024. Este PL mantém a aplicação de penalidades para erros que não deveriam sequer ser punidos, além da repetição de hipóteses de aplicação da pena de perdimento que estão, em muitos casos, totalmente obsoletas.
As penalidades que impliquem erros procedimentais, na qual não se vislumbre intenção dolosa, poderiam ser facilmente substituídas por outro tipo de sanção de natureza não pecuniária, como uma advertência, com a possibilidade de conversão em multa em casos de reincidência na mesma conduta.
O Acordo de Facilitação do Comércio (AFC) e a Convenção de Quioto Revisada (CQR), acordos gestados no âmbito da OMC e da OMA, respectivamente, trazem sugestões para que os países adequem suas legislações a fim de permitir maior conformidade dos participantes da corrente do comércio exterior, sem aplicação de penalidades. Isso está coerente com a pirâmide de conformidade proposta pela Receita Federal, mas que não foram levadas em consideração pelo PL 508/2024.
O PL traz ainda diversas normas processuais sobre a aplicação de penalidades, como é caso do perdimento e das sanções administrativas, perenizando um problema que há muito precisa ser solucionado. Este PL vem sendo emendado de tempos em tempos, que é a existência de diversos ritos processuais administrativos, sem o devido cuidado com a especialização de servidores para esse fim.
O CEJUL – Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras – que foi tratado em artigo disponível aqui. Apesar de ter obedecido, ainda que não de forma integral, às normas existentes em tratados internacionais, é uma solução paliativa que precisa ser aperfeiçoada para se coadunar com os anseios da sociedade brasileira.
No quadro abaixo apresentamos algumas sugestões para a criação do Código Aduaneiro Nacional, com temas que devem ser enfrentados nessa oportunidade, sob pena de mantermo-nos sempre em posição inferior à que deveríamos ter.
Quadro 2: Sugestões de temas a serem alterados no PL 508/2024
A reformulação das normas substantivas, necessária e urgente, deve vir acompanhada da mudança nas normas adjetivas, com a criação de um rito processual único para as três principais hipóteses de contencioso administrativo na área aduaneira, quais sejam, a exigência de multas, a aplicação do perdimento e a aplicação de sanções administrativas, podendo se juntar a estas a criação de um recurso sobre a classificação fiscal de mercadorias.
Mas apenas um rito atual e único ainda não é suficiente. É necessário que seja criado um Tribunal Aduaneiro para que o julgamento administrativo das contestações e recursos dos contribuintes sejam levados a autoridades absolutamente independentes daquelas que aplicaram a penalidade, com uma estrutura adequada e nacional e juízes administrativos sem vínculo com a Receita Federal.
Há uma série de tipos infracionais que são puníveis com a aplicação da pena de perdimento, mas que não são rigorosamente observados pelas autoridades aduaneiras em suas autuações, levando à necessidade de uma completa reformulação para criação de um critério justo de punição, além de julgadores que analisem a matéria sem o viés fiscalista que é característico dos servidores vinculados ao fisco.
Tipificação legal
A tipificação legal de determinadas condutas hoje existente é alargada a ponto de alcançar fatos ou sujeitos que não estão descritos no tipo infracional, na tentativa de aplicar uma punição que, embora pareça ser merecida, não possui todos os elementos caracterizadores do ilícito supostamente cometido, conferindo aos agentes do Estado uma função que não lhes pertence – nem a ninguém, a bem da verdade.
É evidente que essas considerações sobre o PL 508/2024 são preliminares, uma vez que o debate do tema nas casas legislativas deverá fazer as devidas ponderações e promover as necessárias adequações ao texto legal. Isso traz como resultado uma lei aduaneira renovada e capaz de atender às necessidades tanto do ponto de vista do controle aduaneiro, como da preservação da economia nacional, tão importantes para o crescimento do país.
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[1] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/consulta.action